"CORPO DOS AFETOS: UM ESTUDO"

Por Luciano Nunes

OBSERVAÇÕES EM TERMOS ESTÉTICOS DO OBJETO

A arte gráfica da capa resultou numa composição harmoniosa, que remete a simbologia da pop arte que traduzia sentimentos oblíquos ao homenagear ícones de uma época. Assim, ao utilizar-se deste recurso, o autor Hugo Lima demonstra sua admiração por outro autor (Herberto Helder) pouco divulgado, o que, de certa forma, cria uma espécie de cumplicidade literária entre ambos.

A idéia de iniciar o material com apropriações de parte do corpo de um dicionário foi uma estratégia singular em todo o contexto. E a braçadeira soa como uma tarja de censura – vermelha – que envolve e encobre exatamente as fotografias da capa, e deixa visível apenas as letras, dando um tom de glamour e mistério ao material.

A locação dos textos, distribuídos numa ordem crescente, acompanha uma dobradura incidental imperceptível ao ato e ao tato, e libera um fluxo de leitura inconsciente a cada desdobrar de páginas.

Os textos que contêm ilustrações - ou mesmo os visuais - acabam colaborando - e muito - para o enriquecimento da proposta.

A atitude de se publicar de forma independente um material gráfico simples, em tamanho A3 e folha única, frente e verso, demonstra que o autor se prontifica aos riscos do mercado literário que, além de não proporcionar oportunidades louváveis aos iniciantes, tenta, a todo instante, massacrá-los.

OBSERVAÇÕES EM TERMOS DE CONTEÚDO LITERÁRIO

Por se tratar da primeira publicação isolada de Hugo Lima, sua participação lingüística em impressos coletivos como jornais alternativos e fanzines, solidificou-se numa espécie de plataforma que permitiu expor de maneira livre, textos engavetados em sua mente sensível.

Pela leveza, sutiliza e confiança do autor em escrever versos fortes, destaco abaixo algumas pérolas do “Corpo dos Afetos”:

"Funchal, vinte e três de novembro do ano impossível."

“(...) Tenho cantado, pensado, dormido loucamente, me dissipado em álcool, cartas e amigos. Ando fotografando luzes pelos cantos da cidade, amando homens e mulheres e meninos, rasurando corpos nômades acerca do espaço. (...)”

“(...) Não escrevo mais com a mesma entonação de antes. Não sei. Acho que perdi o jeito, o ritmo, a ginga. Com você, peguei a cadência, o tato, o cordão. (...)”

“(...) Mastigo as palavras sete vezes, tatuo constelações pelo corpo, mancho as palavras de vermelho e sinto terríveis saudades d’Ana Cristina. Penso na escrita como um organismo de sonho e alucinação. A verdade é que não sei mais se escrevo ou se sou escrito. Não sou mais severo e ríspido: agora sou profissional. (...)”

Ou mesmo em outros momentos mais profundos como na parte VIII:

“(...) Treinei o medo das palavras numa escrita de silêncios. (...)”

“(...) Pouco estudei sobre o comportamento das paisagens. Conheci o mar pelo ruído das conchas. Aprendi a ler o “texto” em tons de nuvem. Assim percebo o mundo: com éter nos olhos. Escrever tem sido um lento desenvolvimento, uma paixão incurável, um câncer produtivo. Tenho estro voltaico e, das infinitas coisas, um saber arraigado. (...)”

“(...) Experimento a elasticidade das coisas. Sou metade largura. Tenho nos olhos a íris de uma criança...”

Finalizo com um trecho extraído da parte X, onde o autor se expressa através de uma carta endereçada ao escritor Herberto Helder:

“(...) Hoje, sou esta casabsoluta, aprendi a imaginar meus próprios campos de rosas. Meus poemas não saem do poder da loucura. Escrevo com base inconcreta de criação. Penso com delicadeza, imagino com ferocidade. “Beijarei em ti minha enorme vida e em cada espasmo eu morrerei contigo”.

***

A meu ver, os autores e artistas em geral amadurecem a partir do momento em que começam a buscar inspiração em vivências pessoais, apresentando-as de formas simples; e percebo, em “Corpo Dos Afetos”, que o autor começou sua busca. Boa leitura aos interessados!

--

Luciano Nunes (MG) é cartunista, artista gráfico e poeta. Já atuou como arte-educador, ministrando oficinas socioculturais em Belo Horizonte e cidades do inteirior mineiro. Atualmente, edita seus trabalhos de forma independente ou coletiva. Já criou livretos, objetos não convencionais (opúsculos artesanais, caixas de remédio literárias, fanzines, box-zines, outros...), articulando-os esporadicamente, em permutas no diurno e/ou noturno cotidiano belorizontino. Suas primeiras publicações datam de 2003 (jornais estudantis/acadêmicos, regionais e fanzines). Participou de diversas atividades culturais, mostras, festivais, exposições nacionais e internacionais. Dentre as coletivas, destacam-se o 1º FestiVelhas Manuelzão (Morro da Garça/MG), 1ª MMZ (Mostra Mineira de Zines), 1ª Mostra Internacional de Fanzines (São Vicente/SP), 2ª Zona de Ocupação Cultural (BH/MG) e o 3º Festival Internacional de Quadrinhos. Entre as solos estão “Cartoons & Cartuns” (itinerante: Centro Cultural Inter-regional Lagoa do Nado e Centro de Cultura de Belo Horizonte) e “Over Doses Evolutivas” (Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de Belo Horizonte - BPIJBH).