CORPO DOS AFETOS: O OBJETO DA OBRA OU A OBRA DO OBJETO

Por Erthal Terra

Compor um livro-objeto a partir do corpo, incorporar pensamentos e sensações, traduzir impressões, dialogar com a linguagem múltipla de Herberto Helder: foram estas algumas (intro)missões do poeta Hugo Lima na elaboração do seu mais novo livro-pocket ‘Corpo dos afetos: para Herberto Helder’, lançado pela Casa Sana, em setembro deste ano. Um jogo de linguagem composto através das mais variadas formas do dizer:

Verbetes de dicionários, espaços em branco, poemas-processo (como em ‘Tríptico: ou poema de três asas’, feito com colagens de versos do poeta lusitano), cartas, poemas visuais (como em ‘Cinco canções lacunares: ou ode completa), entre outras.

Um livro que se abre e se fecha de acordo com o manuseio do corpo/leitor que interage com o objeto. É nessa interação que se concentra um dos principais objetivos do autor que se inspirou em ‘O corpo O luxo A Obra’, do poeta português Herberto Helder, para escrever a maioria dos textos que compõem o livro.

Sua escrita, como podemos ver numa das linhas de ‘Cinco canções lacunares: ou ode completa’, é sempre muito melindrosa, delicada. Suas palavras, elásticas e ao mesmo tempo frágeis, transportam o leitor à uma viagem infinita para dentro do eu (que, nos textos do livro, é um eu-corpo aristotélico) como se penetrássemos o seu umbigo.

Nessa viagem, nos deparamos com momentos triviais do autor: ‘Tenho cantado, pensado, dormido loucamente, me dissipado em álcool, cartas e amigos. Ando fotografando luzes pelos cantos da cidade (...)’; momentos confessionais: ‘(...) amando homens e mulheres e meninos, rasurando corpos nômades acerca do espaço’; momentos de delírio: ‘Os demônios espalhados pela sala/ Suturações no umbigo/ A boca engolindo seus enormes buracos de água./ O animal creófago e sanguissedento’; momentos de reflexão: ‘Que sei do “tempo”? (...) O que eu vejo, o que me vê?’; de lucidez: ‘O tempo consumindo a matéria (...) Levando das coisas: a beleza/ Deixando nas coisas: a idade (...)/ De que adianta a pressa, o luxo, a morte?/ Cá estamos ao sabor do tempo’; e de admirável sabedoria: ‘A vida é o que se espera, afinal’.

Em ‘Corpo dos afetos’ tudo parece fazer parte de um sonho, desde a impressão do livro ‘o sonho, a vertigem, se faz presente no pocket através da impressão aparentemente ilegível’2 à materialidade dos textos que, baseados na obra de Herberto Helder, têm fortes traços/influências surrealistas.

O impacto estético decorre da forma utilizada, da configuração das letras no espaço da página (...) É o poema, sua palavra, sua imagem, seu verso, em sua visibilidade e mesmo em sua tactilidade, que se tocam, se friccionam, mostrando as infinitas tramas linguageiras do poético3.

Hugo Lima parece bem à vontade com o lançamento de seu primeiro projeto individual. ‘Corpo dos afetos: para Herberto Helder’ inaugura uma tetralogia que pretende dialogar, de forma íntima e antroporegurgitofágica, com vários poetas portugueses, algunas escolhas afetivas do escritor.

Enquanto as próximas edições não chegam, resta-nos – leitores famintos e ansiosos – ler, reler e tresler, dobrar e desdobrar, escrever, rasurar e criticar o objeto da obra e a obra do objeto. Afinal, este é um livro de infinitas viagens/experimentações. Apertemos nossos sintos!


New York, NY. 27 novembro 2009.


Referências bibliográficas

1LIMA, Hugo. Carta a Marcos Faria de Oliveira. Belo Horizonte, 17.10.09.
2LIMA, Hugo. Carta a Marcos Faria de Oliveira. Belo Horizonte, 17.10.09.
3CASA NOVA, Vera. O que se passa aí?: notas de pesquisa sobre poéticas visuais. Suplemento Literário de Minas Gerais, setembro 2005.

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Erthal Terra (SP) é ensaísta, professor e crítico literário. Mestre em Teoria Literária pela Unicamp e colaborador da revista Cult. Tem diversos trabalhos publicados no Brasil, Estados Unidos e Europa. Mora em Nova Iorque há 8 anos.