"E quem e como e onde e porquê"

“Corpo dos Afetos” nasceu de situações terríveis: uma badtrip. Gripe, crise de sinusite e princípio de pneumonia. Sou vaso ruim, Marcos! Disso eu tenho certeza.

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Na noite do dia 24 de agosto, voltei pra casa com o peso de todos os intempéries citados acima: fortes dores no corpo, dificuldades pra respirar e muita febre. Depois de um banho quente, me automediquei com febrífugos e antigripais e fui direto pra cama. Passei horas rolando de um lado pro outro e duas horas depois, visto que não ia mesmo conseguir dormir (lençóis encharcados e corpo queimando), resolvi levantar e ler um pouco... Na cabeceira: “O Corpo O Luxo A Obra”, de Herberto Helder. Acho que a leitura não me caiu bem. Comecei a ter alucinações. Vi vultos, ouvi vozes, tive calafrios e, pra dispersar o medo, comecei a escrever.

Quase todos os textos – com exceção dos números I, II, VI e VII – surgiram do enjôo dessa situação. Acho que nunca tomei a escrita com tanta intensidade. Frases e versos foram se formando quase que instintivamente. Cheguei a sentir espasmos em vários momentos. Tive medo de nunca mais sair daquela viagem. Só consegui dormir às seis da manhã.

Três dias depois, recolhi os textos e reli. Liguei pro Okura na hora (quase duas da manhã). Ele - metódico e oriental que é - me atendeu injuriado (claro!), mas levou tudo numa boa e marcamos um almoço. Ele analisou o material, franziu as sobrancelhas várias vezes e depois me arrebatou com um sorriso dizendo que aquele desvario todo era na verdade uma das idéias mais sensacionais que eu já tive. (será?)

Fiquei tão empolgado que fui pro trabalho revisando texto por texto, pensando criticamente nas possíveis lapidações. Chegando em casa, recortei, colei, inverti, reescrevi, desbastei, enxertei e em quatro dias tudo ficou pronto. O único poema que não mexi foi “Gárgula: ou Das fic(xa)ções do corpo” que me veio inteirinho num sonho que tive e eu entendi como um presente dos deuses. (e que presente!)

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Enfim, inventei o título, escolhi a epígrafe, fiz a capa, criei todo o projeto gráfico, convidei o Luciano Nunes, da Sociedade Mutuante, pra fazer a diagramação, o Okura fez as demais ilustrações e a revisão final do material e a Mariana Ribas – lá de Salvador – deu o toque da tarja que veio a calhar com o surrealismo vermelho e a censura do Herberto.

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A idéia do livro-objeto surgiu como uma forma de dar materialidade ao delírio, ao sonho. E o sonho, a vertigem, se faz presente no pocket através da impressão aparentemente ilegível. O Okura também me questionou bastante sobre o formato, o porquê de não optar pelo modelo tradicional de livro (?) Bom, além de ser uma questão de gosto, a Júlia diz que “um livro, ao mesmo tempo que é limite, é expansão e transformação de idéias, informações, imagens, ficções, questões, através de quem se relaciona com ele. (...) Tanto quem cria é criado, como quem recebe, é recebido. (...) Há um pacto mútuo, o corpo do livro se abre e se fecha, conduz e é conduzido.” E eu acho que respondo bem à pergunta, não?

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Eu compreendo o “Corpo dos Afetos” mais como um projeto pessoal (sim, isto é redundante), mas é porque ali estão coisas que eu precisava dizer a mim mesmo, uma necessidade de autoconsciência da escrita, um “sentir-se escritor” mesmo diante de tantas interferências alheias (que nunca deixam de acontecer, afinal). Talvez o Herberto surja aí apenas como um pretexto (ou pré-texto), assim como as confluências - que vão de Ana Cristina César, passando por Nietzsche e Ferreira Gullar, até chegar à minha contemporânea e tão querida Vera Casa Nova – que foram acontecendo de forma incidental mesmo. (...) Contudo, o Herberto foi uma das escolhas afetivas. Minha relação com sua vida e obra se deu de forma muito intensa. Penso até que minhas idéias, meu modus vivendi literário, se divide em pré e pós H.H.

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Ademais, “não sou mais severo e ríspido, agora sou profissional.”

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Trechos da carta de Hugo Lima a Marcos Faria de Oliveira.
Belo Horizonte, 17 de outubro de 2009.